Sentada ali naquele sótão que se mostrava escuro em todos os sentidos, passava todos os momentos que, escapulindo sorrateiramente, conseguia ficar sozinha. Ninguém mais ia até lá, o ambiente sombrio e os móveis escuros espantavam a todos, menos a mim. Também não haviam espantado a ele, e por isso mesmo se tornou nosso paraíso e, então, cemitério. Agora eu me sentava ali, entre as lápides das nossas lembranças, e escrevia na velha máquina sobre todos os suspiros compartilhados de que me recordava.
Certa vez, ele entrara e me encontrara ali numa situação semelhante, mas não era sobre nós que escrevia. Tentava criar algo que não o tomasse por base em uma interjeição sequer. Vã tentativa, eu já estava envolvida demais. Nunca cheguei a amá-lo, verdade, mas dizia ele sempre que me havia seduzido como Johannes seduz Cordélia: jamais se insinuou ou fez qualquer movimento brusco, deixava a meu encargo toda a mudança. Ele gostava dessa comparação, mas garantia-me que a nossa história não terminaria como a do esteta Johannes e sua apaixonada Cordélia. Dizia ainda que a nossa jamais teria fim, diferentemente da obra de Kierkegaard.
Nesse dia, entrou sem dizer palavra enquanto eu me ocupava de inventar um universo paralelo. Acomodou-se no velho sofá à outra ponta do aposento de teto baixo e inclinado. Pela janelinha redonda de vidro entrava a cinzenta claridade outonal. Perguntou-me:
- De que te ocupas hoje, chérie?
- De algo que não o envolva. - respondi sem levantar os olhos de meu trabalho.
- E está dando certo? - inquiriu-me com educada curiosidade.
- De forma alguma. A vontade se esvaiu por completo quando adentrou por aquela porta com teus silêncios insondáveis. - disse sem ainda lhe dirigir o olhar.
- Oh, não! Lembra-te de Jane Austen nesses momentos, sim? "Não estou com vontade alguma de escrever, devo escrever até estar."
- E quanto a você? - finalmente permiti que meus olhos pousassem sobre ele.
- Ficarei feliz em te observar em silêncio. - sorriu. E então nem mesmo a própria Jane Austen me faria voltar meus olhos ao meu enfadonho trabalho.
Tudo começara tempos antes, quando me surpreendeu ali logo que fugi da visita que ele e mais alguns faziam à minha família. Havia ele, também, escapulido da conversa monótona e achou meu esconderijo. Não vi nenhum calafrio percorrer-lhe o corpo ao entrar em meus domínios, e não retrocedeu um milímetro sequer, e foi só por isso que por fim o notei plenamente pela primeira vez na vida.
Passou a visitar-me em meu próprio território quase que diariamente e nunca foi notado por outrem. Sentava-se mudo e nunca me olhava. Eu pensava sempre que, como eu, ele também necessitava de um esconderijo onde pudesse trancar-se em si mesmo sem correr o risco de alguém tirá-lo de lá a força. Enganei-me. Quando finalmente pronunciou-se, depois de meses de meditação muda, sua frase pegou-me despreparada.
- É necessário beber o prazer a lentos tragos. - disse simplesmente, olhando-me pela primeira vez. A frase tirou de Diário de um Sedutor, Johannes era seu herói predileto, Kierkegaard era seu ídolo. Compartilho, hoje, dessa paixão. À ocasião, no entanto, não fazia idéia sobre nenhum dos dois. Ainda assim, seu pronunciamento causou-me tamanho efeito que cheguei até a vislumbrar o que estava por vir. Entretanto, nem mesmo tentei me esquivar.
Quando criança, no sótão eu me escondia das realidades alheias, nada me perturbava dentro do armário empoeirado, nem o sobrenatural. Agora, ali, no mesmo lugar, tentava eu me livrar da minha própria realidade despejando-a no papel.
Fui, então, rudemente interrompida pela entrada dele. Arfava, os cabelos estavam em desordem.
- É esse o fim da nossa história? - perguntou-me, após tantos anos de silêncio, com ar desolado, os olhos esbugalhados em desespero e súplica.
- Cala-te. Falta apenas colocar o ponto final.
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Arrepiei-me. É lindo!
ResponderExcluirDescreveu-me em meio aos seus cabelos desarrumados. Foi inquietante, melancólico.
ResponderExcluirClarinha,
ResponderExcluirÉ um prazer ler o que você escreve!
Estamos com saudades!
de onde vem isso? de dentro da minha maninha???????
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